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A cultura gay através dos tempos - Antonio Gonçalves Filho Parte 2



Mais de 2 milhões de pessoas devem acompanhar, hoje, a parada gay na Avenida Paulista. Muitos lembrarão que até mesmo no nome ela deve algo ao movimento gay americano e ao modelo que adotou, vindo dos EUA, mas o fato é que já existe uma homocultura brasileira que permite, por exemplo, o lançamento simultâneo de quatro livros sobre o assunto, um deles escrito por um padre inglês, católico, que escolheu o Brasil para viver, James Alison (leia entrevista nesta página), autor de Fé Além do Ressentimento. Os outros três livros, de alguma forma, dialogam entre si, tratando da evolução dessa homocultura não só no Brasil como no mundo.

 Amor de caubóis heath Ledger e Jake Gyllenhaal em O segredo de Brokeback Mountain, êxito até fora do meio homossexual

Retratos do Brasil Homossexual - Fronteiras, Subjetividades e Desejos reúne ensaios apresentados no IV Congresso da Abeh - Associação Brasileira de Estudos da Homocultura, realizado em 2008. Em Cine Arco-Íris (Edições GLS), o ativista paulistano Steve Lekitsch faz um apanhado de 270 filmes com temática homossexual realizados nos últimos 100 anos. Finalmente, em La Identidad Homosexual - De Platón a Marlene Dietrich, Paolo Zanotti, professor italiano de Literatura, examina a formação da homocultura desde os antigos gregos até Marlene Dietrich, ícone gay por causa de filmes como Marrocos. Nos últimos anos de vida, a atriz estava tão obcecada pela ideia de que podia ser contaminada pelo vírus da aids que evitava abrir cartas de seus fãs homossexuais, encarregando a filha de espalhar, após sua morte, que a mãe se contagiou pelo correio.

Essa revelação de La Identidade Homossexual vem seguida de uma interessante observação do autor. Zanotti, recorrendo à ensaísta americana Susan Sontag, diz que os gays reagiram à aids - e às atitudes adversas como a de Dietrich - usando a estratégia de dar uma imagem de si mesmos a mais saudável possível. Essa imagem de saúde pós-aids, que se traduz nos "sarados" da parada gay, coincide, segundo Zanotti, com o único ideal de autocontrole proposto em nossos dias - "o autocontrole em nome do corpo, da dieta, da forma física". Desde os anos 1980, esse ideal, diz o autor, se difunde com sucesso. O homem gay, conclui, "se converteu num exemplo mais aperfeiçoado do macho prototípico, um hedonista com corpo de ginasta."

Zanotti vai mais longe, citando Pasolini. Quando o cineasta italiano se rebelou contra a "nova" homossexualidade, estaria justamente criticando a identificação dos gays com traços da cultura que o oprime. Talvez isso explique o sucesso do filme O Segredo de Brokeback Mountain (foto maior), um dos analisados no livro Cine Arco-Íris, ao envolver dois caubóis rudes num relacionamento que termina de forma trágica, com um deles sendo espancado até a morte por homofóbicos. O autor do livro, Lekitsch, não adota o tom ensaístico de Zanotti. Escreve apenas pequenas sinopses dos filmes, esquecendo títulos fundamentais que tiveram um papel histórico na luta pelo reconhecimento dos direitos civis dos homossexuais, como Meu Passado Me Condena (Victim, 1961), o filme de Basil Dearden que ajudou a mudar a lei que considerava a homossexualidade crime na Inglaterra.

A homocultura e os direitos humanos, aliás, é o primeiro capítulo de Retratos do Brasil Homossexual. No texto inaugural, a advogada Maria Berenice Dias analisa a união homoafetiva na Constituição Federal e propõe a elaboração de um Estatuto da Diversidade Sexual, a exemplo dos estatutos do Idoso, da Criança e do Adolescente. A inexistência de um "discurso específico da homocultura", conclui o escritor João Silvério Trevisan no livro, revela que o movimento pelos direitos homossexuais no Brasil "continua tateando até hoje".

De qualquer forma, o papel dos pioneiros é lembrado no livro até por estudiosos estrangeiros como o acadêmico Robert Howes, do King"s College de Londres. Ele analisa a obra literária do pouco conhecido escritor pernambucano Gasparino Damata, um dos criadores do Lampião (primeiro jornal gay brasileiro), que foi suboficial no United States Transportation Corps na 2ª Guerra e relatou sua experiência amorosa com um soldado americano em Queda em Ascensão, publicando depois A Sobra do Mar (1955), sobre um marinheiro que é desejado pelo capitão do navio, como o Querelle de Genet. Graças a Damata e outros pioneiros, como Adolfo Caminha, autor de O Bom Crioulo, os gays desfilam hoje, orgulhosos, em carros alegóricos, não em deprimentes viaturas de polícia.





SÃO SEBASTIÃO, O PADROEIRO MAIS COPIADO

 

 

Desde que o escritor japonês Yukio Mishima publicou o romance autobiográfico Confissões de uma Máscara, em 1949, revelando a emoção do narrador diante de uma reprodução da tela pintada pelo italiano Guido Reni (foto ao lado), São Sebastião tem sido usado como exemplo do martírio gay - a atribuição dessa orientação sexual, no entanto, seria uma invenção do século 19, segundo o livro La Identidad Homosexual. De qualquer forma, depois de Mishima, que posou vestido (ou melhor, despido) de São Sebastião para seu amigo Kishin Shinoyama, em 1963, o inglês Derek Jarman resolver dar a sua versão da história, realizando em 1976 o filme Sebastiane (disponível em DVD), em que o santo fala em latim que não está disposto ao sexo com seu superior militar. O alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935), médico pioneiro na defesa dos direitos dos homossexuais, colocou o quadro de Reni na lista das obras de arte mais apreciadas pelos gays, dando margem a uma associação entre desejo homossexual e impulso sádico, tão controvertida como as teorias do sexólogo.

UM PADRE LUTA POR UMA IGREJA ABERTA

O livro Fé Além do Ressentimento, do padre inglês James Alison, começa com uma história bíblica, a de José e seus irmãos. É, portanto, a história de um homem socialmente morto para a família, mas renascido em outro lugar, onde foi mais feliz e próspero. No entanto, para que seus irmãos não persistam no caminho fratricida que haviam escolhido, imagina uma estratégia para atrair aqueles que o traíram e compartilhar com os inimigos a abundância que lhe foi concedida. Alison não crê que José estivesse livre do ressentimento quando foi vendido como escravo pelos irmãos, mas acredita que ele teve tempo de meditar no Egito que o pior caminho para quem conheceu o deserto da intolerância seja justamente o do ódio.
"Essa história é uma das maravilhas do Velho Testamento", diz Alison, que com ela pretende contar a própria trajetória de gay criado num ambiente de classe média conservadora inglesa - ele era evangélico anglicano. Alison descobriu que a fé católica não é inconciliável com a condição homossexual. Formado em Teologia na Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, Alison vive sem restrições a sua homossexualidade e está adotando um filho brasileiro, Luiz Felipe, após ter perdido, em 1994, seu parceiro Laércio, vítima da aids.
Foi lendo o filósofo René Girard, teórico francês que estuda questões como o desejo e a violência, que Alison encontrou seu canal de expressão. Seu projeto de vida é criar uma pastoral para formar jovens gays rejeitados por suas famílias e que acabam, muitas vezes, se entregando à prostituição para sobreviver. Seu livro não trata exatamente de sua experiência pessoal com os segregados mas mostra, por meio do estudo bíblico e dos textos de Girard, que a paranoia alheia está sempre à espreita para virar a nossa.
No lugar de condenar a inflexibilidade do Vaticano sobre o reconhecimento das relações homoafetivas, Alison diz que se empenhou para provar que é possível viver uma vida amorosa de natureza homossexual e seguir, ao mesmo tempo, o sacerdócio, como o religioso do filme O Padre, da inglesa Antonia Bird. Assumido, garante que não foi condenado por desafiar a atual posição eclesiástica sobre os gays. "No meio eclesiástico existem muitos homossexuais", diz, garantindo que a Igreja tem sido mais tolerante hoje do que foi no passado recente. "Na época de João Paulo II ela era mais hostil." Isso não quer dizer que a Cúria Romana tenha a intenção de rever sua posição sobre a cultura gay. Ela pode reconhecê-la, mas ainda parece distante de aceitá-la